Livro ganhador do Jabuti é censurado
Está em jogo o acesso de alunos de escolas públicas à literatura de qualidade
Em 2020, publiquei no Medium um texto sobre censura a livros em pleno século XXI, cujo título era “É censura que fala?”. O principal motivador do meu texto na época foi o caso de censura que ocorreu em Rondônia, quando o Secretário Estadual de Educação mandou recolher 43 títulos, dentre eles alguns clássicos da literatura brasileira e mundial. Vou colocar aqui um trecho desse texto que, infelizmente, permanece atual:
“Desde sempre, livros se tornam perigosos, porque, além de terem muita coisa escrita, são símbolos de saber e de poder. Não foi à toa que, no segundo turno das eleições de 2018, depois que alguns eleitores levaram armas e gravaram vídeos exibindo-as, a campanha de levar um livro para votar ganhou muita força. Todos sabemos o que pode significar um povo que tem acesso ao conhecimento de modo livre: emancipação.”
Quatro anos depois, estou eu aqui novamente sentada à frente do meu computador, escrevendo sobre mais um caso de censura a livros na área da educação, dessa vez ocorrida no sul do Brasil. Neste final de semana, a editora Companhia das Letras postou em seu instagram que o livro “O avesso da pele”, escrito por Jeferson Tenório, ganhador do Jabuti de melhor romance, foi censurado. Isso porque a diretora de uma escola pública da cidade de Santa Crus do Sul, no Rio Grande do Sul, fez um vídeo em que acusava o livro de conter palavras de baixo calão. Diante da repercussão desse vídeo, a 6° Corregedoria Regional de Educação mandou recolher a obra das escolas até uma resposta do governo federal. Desde que isso veio à tona, duas amigas minhas que fizeram vídeos sobre o livro, nos seus canais do Youtube, relataram que vêm sofrendo ataques, com pessoas fazendo comentários agressivos e mal-educados. Como podemos observar, é mais uma ação orquestrada pela extrema-direita brasileira que quer tomar conta de todas as pautas em educação, colocando-nos sob a tutela de uma visão conservadora e tacanha. Esse não é o primeiro (e infelizmente acredito que não vai ser o último) caso de censura a livros em ambiente escolar.
Gostaria, claro, de prestar a minha solidariedade ao escritor Jeferson Tenório e o meu repúdio à censura de seu livro. Entretanto, neste texto, a professora vai falar um pouco mais do que a escritora. Portanto, meu papel vai ser o de falar aqui para você sobre o PNLD Literário, que foi a forma como o livro chegou à escola dessa diretora, ou seja, o livro chegou através de um programa do governo federal que faz com que livros de altíssima qualidade cheguem aos alunos de escolas públicas de forma gratuita.
Então, vamos começar do começo: o que é o PNLD? O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) é um programa do MEC (Ministério da Educação) que tem por objetivo principal avaliar e distribuir livros didáticos, pedagógicos e literários, de forma universal e gratuita, às escolas públicas das redes de ensino básico e às instituições de educação infantil sem fins lucrativos e conveniadas com o Poder Público.
Existem inúmeras etapas até que um livro literário (assim como o didático) chegue ao seu público específico, ou seja, alunos de um determinado segmento. A primeira etapa é o edital do PNLD que pode ser acessado de maneira pública por todas as pessoas que quiserem conhecer o processo. Depois disso, as editoras submetem os seus livros para que sejam avaliados pelo MEC, de acordo com parâmetros que estão estabelecidos nesse edital, que segue as diretrizes e documentações da educação que vigoram no país.
O MEC cria uma comissão com profissionais capacitados, professores (muitos deles doutores) de Literatura, e essas pessoas vão avaliar conteúdo, forma e adequação dos livros para cada etapa de escolaridade, determinando se os livros estão aptos ou não a serem distribuídos pelo MEC. Depois que os livros são aprovados, o MEC cria um catálogo e envia para as escolas. Nessa fase, entra o nosso papel como professoras, que é o de escolher os livros que queremos trabalhar com nossos alunos, de acordo com o projeto político pedagógico de cada instituição.
A partir dessas escolhas, o MEC compra os livros das editoras e distribui para as escolas. No formulário enviado temos que selecionar mais de uma opção, então quando os livros chegam é que vamos saber qual dessas opções vamos ter disponíveis. A chegada do livro na escola também passa por mais uma etapa, não é simplesmente a transportadora entregando na porta de escola e tchau. É necessário ter uma pessoa responsável - geralmente a diretora ou a coordenadora da escola - para assinar o documento do recebimento. Dentro de cada etapa dessas, existem ainda outras subetapas, como a reunião em que professores debatem quais os livros vão solicitar dentre as inúmeras e diversas opções disponíveis. Vou falar uma coisa para você, são tantos livros incríveis que a escolha não é nada simples.
Voltei a lecionar na escola pública em 2019, apenas no ano passado, já no segundo semestre, recebemos a nossa primeira leva de livros do PNLD literário. Repito: livros que foram escolhidos por nós - professoras - diante do amplo catálogo do MEC. A primeira caixa que recebemos estava cheinha de exemplares de “Torto Arado”, livro premiado de Itamar Vieira Júnior. Você não tem noção da emoção que eu senti quando vi mais de 40 exemplares desse livro na minha frente. Sim, eu chorei de emoção. Livros novinhos. Cada aluno poderia pegar e levar o seu para casa. E devolver depois para que usemos novamente no ano seguinte.
Registro do dia em que recebemos as caixas de exemplares de Torto Arado. Livro com selo do PNLD Literário
Logo em seguida, recebemos “Insubmissas lágrimas de mulheres”, de Conceição Evaristo. Mais um choque. Mais uma alegria. Conseguimos trabalhar o “Insubmissas” no ano passado mesmo. A minha turma da 2a série do Ensino Médio, basicamente formada por meninos, teve contato com uma literatura que questiona a violência contra as mulheres. E sabe o que eles me disseram? Que ler esse livro foi importante! Posso ainda contar que, na 1ª série do Ensino Médio, lemos “Vamos comprar um poeta”, livro do português Afonso Cruz. Na 2ª série, além de “Insubmissas lágrimas de mulheres”, lemos “O alienista”, em formato de HQ. Estou contando para vocês apenas um exemplo do que aconteceu comigo. Mas exatamente agora, quando você estiver lendo esse texto, um aluno, uma aluna da rede pública estará abrindo um livro enviado pelo PNLD. E todos nós sabemos a transformação que a leitura de um livro pode fazer na vida de uma pessoa. Por isso, precisamos defender e não atacar essa política pública. Quando possível, fale para seus amigos sobre isso. Converse com aquela pessoa que pode ter recebido esse vídeo pelas redes de extrema-direita. Enfim, vamos fazer o nosso papel, tentando sair um pouco apenas da nossa bolha.
Para finalizar esse texto, gostaria de dizer que essa censura relacionada a livros não está acontecendo apenas no Brasil. A restrição a obras literárias vem suscitando preocupações sobre o acesso à diversidade literária e à liberdade de expressão também nos USA. O curta-metragem documental da MTV "The ABCs of Book Banning" (Os ABCs da Proibição de Livros), que recebeu indicação ao Oscar 2024, na categoria melhor documentário de curta-metragem, mostra a perspectiva dos estudantes acerca da proibição das obras.
Como cantava a nossa saudosa Gal, “é preciso estar atento e forte!” Lembrando que Divino Maravilhoso é uma letra de Caetano Veloso e Gilberto Gil composta no auge da ditadura, em 1968.
Curso Escrever a vida: a literatura de Annie Ernaux
Começa neste sábado, dia 9 de março, o curso que vou dar juntamente com a historiadora e editora Natália Bravo, sobre a escritora francesa Annie Ernaux. Serão três sábados do mês de março, dias 9, 16 e 23, às 10h da manhã. Será um tempo de muito aprendizado e de abertura de portas e de mentes, que é o que a literatura nos proporciona. Caso você tenha interesse em participar, me mande uma mensagem. As vagas são limitadas e já estão se esgotando.
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